Relicário do Rock Gaúcho

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[LEITURA] Inconsciente Coletivo – por Emiliano Pacheco (3 de 3)

Inconsciente Coletivo – o show

Antes tarde do que nunca, como prometido, o meu terceiro texto sobre o grupo gaúcho Inconsciente Coletivo.

Eu e meu amigo Carlos Magno, hoje um bem sucedido médico, estávamos saindo da primeira noite do Genesis em Porto Alegre, em 10 de maio de 1977, quando um cartaz na parede do Gigantinho me chamou a atenção: era o anúncio de um show do Inconsciente Coletivo chamado “Sul, Primeiros Passos”. Foi ali que fiquei sabendo que minha banda preferida faria sua primeira apresentação individual no teatro da Assembleia Legislativa.

Seis dias depois, no dia 16, uma fria noite de segunda-feira, lá fui eu, com o mesmo casacão horrível com que assistira ao ensaio do grupo, ver o anunciado show. Minha expectativa era grande, pois além de ser uma apresentação inteira só deles, haveria duas novidades: músicas de outros artistas gaúchos do momento no repertório e a participação de Fernando Pezão na bateria. Um dia alguém precisa entrevistar Pezão, pois ele deve ter história para contar. Possivelmente ninguém tem um currículo tão diversificado quanto ele na música do Rio Grande do Sul: Mantra, Zacarias, Hallai-Hallai, Inconsciente Coletivo, Almôndegas, Saracura, Nico Nicolaiéwsky, Discocuecas e, atualmente, os Papas da Língua. E como desde o ano anterior o baixista Calique fazia parte do grupo, o Inconsciente Coletivo iria se apresentar como um quinteto: Alexandre, João Antônio, Ângela, Calique e Pezão.

Lá chegando, identifiquei na plateia o Glei, irmão do meu colega Nizan. Hoje ele é mais conhecido como o jornalista Glei Soares. Ao lado dele estava o Atos, com quem eu teria mais contato alguns anos depois através de outros amigos comuns. Sentei com eles. Algumas fileiras atrás de mim, reconheci o músico Fernando Ribeiro, que havia lançado seu primeiro LP “Em Mar Aberto” fazia pouco tempo. Ainda lembro da voz dele cumprimentando uma amiga que se aproximou: “Tudo bem?” Na minha frente, uma moça comentava com outra: “Aquele cara ali de camisa verde foi quem ganhou o Musipuc”. A final do festival tinha sido no dia 8 de maio e o “cara de camisa verde”, que estava ainda de pé alguns degraus atrás, era José Luiz Athanásio de Almeida, ou Zezinho Athanásio, futuramente Joe Euthanázia ou apenas Joe. Ele havia vencido a competição com “Equilíbrio”.

Não prometo que vou lembrar de todas as músicas, nem da ordem certa, mas farei o melhor possível:

  • “Sobre a Guerra” – A composição com que o Inconsciente Coletivo havia concorrido no Musipuc do ano anterior. Tenho quase certeza de que essa abriu o show. João Antônio normalmente ficava na viola, mas aqui ele tocava piano. O grupo estava sempre fazendo pequenos ajustes nos arranjos e uma diferença de que lembro bem é João cantando junto com Alexandre o verso “ou infelizes marionetes”, que antes era um trecho solo do segundo. Outra mudança marcante foi a presença da bateria de Pezão, reforçando os trechos de piano com uma sonoridade bem agressiva, condizente com a música.
  • “Êxodo Rural” – A composição que eu conhecera “em primeira mão” no ensaio. No trecho “más notícias chegaram…”, Calique cantou junto, então lembrei do que ele havia me dito enquanto caminhávamos juntos para a parada de ônibus: “Enquanto eu não estiver fazendo vocal, etc., não vou me sentir Inconsciente”.
  • “Noite”- Essa talvez seja a minha música preferida do Inconsciente Coletivo. E nunca tocou na rádio Continental. Eu a conheci por uma gravação feita com microfone pelo Nizan, irmão do Glei (que estava vendo o show comigo), no 4º e último “Vivendo a Vida de Lee”, em dezembro de 1976. Naquela ocasião, Ângela cantou vários trechos sozinha. Aqui os solos dela foram substituídos por três vozes em uníssono (Alexandre, João Antônio e Ângela, os integrantes originais). A bateria de Pezão deu o toque de perfeição que faltava, em especial no trecho instrumental antes do verso “noite se abre como asa de ave”. Hoje sei que Alexandre era fã de Cat Stevens (ele cantava “Morning has Broken” em seus showzinhos no Kilt, nos anos 80), então percebo uma influência de “18th Avenue” no arranjo.
  • “Azulão” – Uma das “homenagens” do repertório. Música de Carlinhos Hartlieb. Antes de cantá-la, Alexandre contou uma longa história de como a música havia sido feita pelo autor, ao ver um pássaro azulão na Redenção (a rima não foi desperdiçada na letra).
  • “Portas e Janelas” – Blues de Zé Flávio, do repertório do Mantra. Como Pezão havia sido baterista do grupo, ele mesmo a cantou, depois de homenagear o autor, dizendo que “hoje ele (Zé) é gente fina, tá lá na GB” (com os Almôndegas).
  • “Daisy My Love” – Música dos Almôndegas, de autoria de Kledir. Foi cantada por Calique.
  • “Rei” – Belíssima composição do Hallai-Hallai, aqui apresentada com um raro vocal solo de João Antônio.
  • “Novo Lugar” – Essa sempre foi uma de minhas músicas preferidas do Inconsciente Coletivo, mas eu desconhecia o nome. Vim a saber quando ela foi incluída no CD que acompanha o livro “Continental, a Rádio Rebelde de Roberto Marinho”, de Lucio Haeser. Se bem lembro, João Antônio cantou um verso sozinho, numa pequena alteração do arranjo original.
  • “Em Meio aos Campos” – Composição de Fernando Ribeiro e Arnaldo Sisson que havia sido gravada pelos Almôndegas no segundo LP, “Aqui”. O arranjo do Inconsciente Coletivo foi bem diferente, talvez mais próximo do que seria uma interpretação do próprio Fernando. João Antônio voltou para o piano, Pezão limitou-se a reforçar o som nos pratos, sem marcar ritmo, e quem fez o vocal solo foi Ângela.
  • Com certeza eles fizeram uma música de Gilberto Travi & o Cálculo IV, mas aqui minha memória é falha. Não lembro qual foi. Talvez “Visão” ou “Pretensão”. O que eu nunca esqueci foi João Antônio citando um por um os integrantes do grupo e deixando para o final “a minha Betinha”. Ele namorava a vocalista Beth, na época.
  • “Herói Suburbano”- Antes de cantar essa, Ângela falou: “Um sonzinho nosso…” Como quem dá uma sugestão. A gravação que rodava na rádio Continental tinha João Antônio e Ângela cantando sem Alexandre, que ficava tocando sua harmônica quase o tempo todo. Era uma combinação incomum no grupo e soava meio estranha para quem estava acostumado com o vocal dos três. Aqui, Alexandre dispensou a harmônica e o que se ouviu desde o início (não só no refrão) foi a tradicional soma das vozes de Alexandre, João Antônio e Ângela.
  • “Guantanamo” – Um deles, talvez Alexandre, começou a dizer que eles iriam homenagear “nosso irmão mais velho de gravadora”, referindo-se à Tapecar. Falou bastante, mas esqueceu um dado essencial: o nome do músico. Quando ele terminou, Ângela completou: “Hermes Aquino!” “Guantanamo” é uma parceria entre Hermes e Fogaça, que fez a letra.
    “Fadas Douradas” – Era o lado B do compacto do grupo. Desde o lançamento do disquinho, no final do ano anterior, o arranjo das músicas ao vivo procurava se aproximar ao máximo da sonoridade das gravações de estúdio. A principal diferença era a aceleração do andamento e, no caso desta música, o vocal solo de Ângela. Mas, de um jeito ou de outro, a interpretação deles no palco sempre saía melhor do que a do disco. Calique e João Antônio tocaram a introdução de flautas em uníssono, como já haviam feito no ensaio a que assisti.
  • “Fazenda São Bernardo” – Essa eu não conhecia, ouvi pela primeira e única vez. Alexandre anunciou-a dizendo que era uma música importante para ele.
  • “Velhas Mentiras” – Calique anunciou essa dizendo apenas: “Pra vocês, ‘Velhas Mentiras’…”. Era uma composição diferente das que o grupo normalmente fazia, um blues mais acelerado com vocal solo de Ângela e novamente João Antônio ao piano. Parecia ter uma certa influência do repertório de Elis Regina em “Falso Brilhante”. A exemplo de “Noite”, foi mostrada pela primeira vez no 4º “Vivendo a Vida de Lee”, em dezembro de 76.
  • “Voando Alto” – O lado A do compacto. Com a bateria de Pezão, eles puderam tocar praticamente igual ao disco.
    “Canteiros de Tramandaí” – Essa foi a última música, não lembro se no roteiro normal ou no bis (programado, obviamente). Era um blues atípico no repertório do grupo, com João Antônio tocando guitarra (e não viola, como nas demais composições).

O show tinha um roteiro, com apresentação das músicas e dos integrantes. Mas houve improvisações, claro. Alexandre soltou um riso espontâneo quando Calique introduziu Fernando Pezão como tendo cabelos “naturalmente encaracolados”. João Antônio comentou entre músicas: “O frio abalou as estruturas.” Mas o teatro estava cheio. À direita, em frente ao palco, Francisco Anele Filho, técnico da rádio Continental, pilotava um imponente gravador de rolo. Agora essa fita tem que aparecer de qualquer jeito!

Algum tempo depois o grupo apresentou uma versão adaptada do show no Colégio Anchieta. Eu estava lá, também. A acústica atrapalhou um pouco. João Antônio trocou o piano por um órgão. Eu diria que ficou até melhor em “Em Meio aos Campos”, mas com certeza não em “Sobre a Guerra”. Houve ainda um “bônus”: a nova música “Camarada”, que não havia sido apresentada na Assembleia.

É uma pena que, quando o ano terminou, o Inconsciente Coletivo não existia mais. “Sul, Primeiros Passos” havia mostrado que o conjunto estava amadurecido e pronto para um LP, de preferência com uma produção mais afinada com o som natural deles. Resta a esperança de que a fita que estava no gravador de rolo do Anele ainda exista. Esse, com certeza, foi um dos melhores shows a que assisti na minha vida.


emiliopacheco.blogspot.com/2012/06/inconsciente-coletivo-o-show.html numa quarta-feira, junho 20, 2012


Sobre o autor, por ele mesmo:
Emilio Pacheco, Porto Alegre, RS, Brasil, sou jornalista free-lancer apaixonado por música. Minhas colaborações mais frequentes foram para o International Magazine, mas já tive matérias publicadas em Poeira Zine e O Globo. Também já colaborei com os sites Portal da Jovem Guarda e Collector’s Room. Aqui no blog, escrevo sobre assuntos diversos.


Sobre o Xandy: [clique aqui], video e áudio: [clique aqui]

Sobre o ‘Grupo Inconsciente Coletivo‘:

Parte 1 de 3 [clique aqui]
Parte 2 de 3 [clique aqui]
Parte 3 de 3[clique aqui]

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