Relicário do Rock Gaúcho

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[LEITURA] Inconsciente Coletivo – por Emiliano Pacheco (2 de 3)

Inconsciente Coletivo – o ensaio

Conforme prometido, aqui vai meu segundo texto sobre o Inconsciente Coletivo, contando sobre o ensaio do grupo a que assisti em 1976. Mas vou começar explicando como aconteceu meu contato com os músicos. Então é o momento certo para lembrar como me tornei fã.

Em 1975, o Inconsciente Coletivo era um de muitos grupos e artistas gaúchos que a Rádio Continental de Porto Alegre rodava com exclusividade. Mas eu ainda não sabia disso. Quando ouvi “Voando Alto” pela primeira vez, pensei que eles já tivessem disco. Depois comentei com um amigo sobre um conjunto novo que eu tinha escutado, “não sei das quantas Inconsciente” e ele disse na hora: “Inconsciente Coletivo”. E citou algumas músicas que conhecia. Mais adiante, meu irmão João Carlos Pacheco, na época morando no Rio, veio a Porto Alegre em viagem a trabalho. Ele sempre visitava a Continental, onde havia sido e voltaria a ser locutor, às vezes até dando uma canja no microfone. Pois numa dessas visitas eu fui junto. E o operador da rádio, o Magrão Augusto, me mostrou o cartucho com a música “Voando Alto”. Ali fiquei sabendo como eram feitas as gravações exclusivas.

Na noite de 30 de abril de 1976 aconteceu a primeira das duas apresentações do concerto “Vivendo a Vida de Lee” nº 3. Eu, minha irmã e uma turma de amigos comparecemos ao Teatro Leopoldina para prestigiar Beto de Barcellos, irmão de meu (hoje ex) cunhado. Mas claro que eu estava na expectativa das apresentações todas. E o grupo que eu mais esperava não decepcionou. Pelo contrário, confirmou a qualidade que eu já previa pelas amostras que escutara no rádio. Depois, no programa Mr. Lee em Concerto, o radialista Júlio Fürst colocou no ar uma sequência de depoimentos de jovens que haviam assistido aos shows. O primeiro deles foi curtíssimo, mas resumiu exatamente o que eu sentira: “Foi tudo muito legal, mas o melhor mesmo foi o Inconsciente Coletivo”.

Cheguei em casa com minha irmã (grávida de seu segundo filho, meu sobrinho Rafael) e nossa mãe quis saber tudo sobre o show. Falamos bastante e eu não deixei de elogiar o grupo que acabara de ver ao vivo pela primeira vez. Minha irmã endossou minha opinião. No começo daquele ano, meus pais haviam feito uma viagem histórica a Gravatal. Histórica porque, nessa época, era raro eles viajarem. Mas dessa vez foram e se divertiram. E fizeram amigos. Um deles foi o senhor João Araújo e sua esposa. Um dia, ele comentou com meus pais que seu filho tinha um conjunto chamado Inconsciente Coletivo. Minha mãe lembrou do nome na hora e falou de minha admiração pelo grupo. Eles eram os pais do João Antônio. Foi ali que surgiu um pré-convite para eu um dia assistir a um ensaio deles.

Depois disso, veio a notícia que me deixou eufórico: eles haviam sido contratados pela Tapecar! Iriam gravar um disco. Não recordo exatamente, mas acho que foi por isso que resolvi cobrar logo de minha mãe que fizesse um contato para saber se ainda estava de pé a possibilidade de eu comparecer a um ensaio do Inconsciente. E se eles estourassem e acabassem se tornando, digamos, inalcançáveis aos simples mortais? Minha mãe telefonou para a esposa do seu João e ela falou: “Eles estão ensaiando agora, diz para ele vir, então!” Era um domingo. Não vou lembrar a data certa, mas com certeza foi algum tempo depois de 7 de agosto de 1976, em que havia acontecido o Vivendo a Vida de Lee em Passo Fundo. Eu tinha 15 anos.

Fui de táxi até a casa do João Antônio, na rua 16 de julho. O grupo ensaiava na casa de Alexandre, um pouco mais adiante. A mãe do João me levou até lá. Ao me aproximar, já senti uma emoção ao escutar a música saindo da janela e avistá-los empunhando os instrumentos pelo lado de dentro. Ouvi um som de flauta e perguntei: “Flauta é ele (referindo-me ao João Antônio) que toca?” Ela confirmou: “Sim, flauta é o meu filho.”

Fomos atendidos pela irmã do Alexandre. Ela nos acompanhou até o quarto onde eles estavam tocando. A mãe de João Antônio me apresentou como poeta, já que naquela época eu frequentava o Grêmio Literário Castro Alves. Hoje, relembrando a cena, presumo que tenha havido um aviso prévio de minha chegada, pois ninguém esboçou surpresa. Já havia até uma cadeira estrategicamente colocada e o Alexandre falou: “Senta aí!”

Aqui começa exatamente a experiência do fã no meio dos seus ídolos. Na parede à direita havia dois pôsteres: um do show do Bill Haley em Porto Alegre, que teve abertura do Inconsciente Coletivo, e uma foto pequena em preto e branco do rosto de Alexandre tocando sua harmônica à la Bob Dylan. Alexandre estava sentado à minha direita. João Antônio e Ângela estavam de pé à minha frente, de costas para a janela. À minha esquerda, também de pé, estava um rapaz alto e magro com aparência mais jovem do que os demais, com um baixo plugado. Esse eu não conhecia. Perguntei (vou transcrever as falas como foram ditas, sem corrigir erros de concordância): “Tu é do conjunto, também?” Ele respondeu: “Tô entrando…” Era o Calique, que no futuro se destacaria como compositor de jingles e regente e integrante esporádico do Canto Livre.

Após a minha recepção e acomodação (eu lembro que era uma tarde fria e eu estava com um casacão cinza horrível que caía sobre as minhas pernas), a primeira a retomar o ensaio foi Ângela. Ela estava segurando uma escaleta que depois acabaria deixando de lado. E falou: “Tá, eu não sei se é lá lá lá…”, cantarolando o trecho que deveria tocar. Aos poucos eles foram se achando. Pela introdução com flauta e harmônica, reconheci a música: “Salve o Rei”, que a Continental já vinha rodando havia alguns dias. João Antônio tinha apenas alguns compassos para largar a flauta e colocar o violão a tiracolo bem a tempo de tocá-lo. Quando Alexandre começou a cantar (“Pequena cidade entre montanhas…”), tive uma das sensações mais incríveis de minha vida como apreciador de música: a de escutar a voz que eu ouvia todas as noites no rádio saindo da garganta do sujeito ao meu lado! Eles executaram a música tal e qual eu a conhecia, só que não era em rádio nem em teatro: era eu ali, no meio deles, em som direto, “surround natural”, um verdadeiro show particular! Acho que nem eles podiam imaginar o que eu sentia naquele momento.

E eles tocaram “Salve o Rei” diversas vezes. Um deles, acho que o João Antônio, falou brincando que eu iria enjoar da música. Isso, é claro, estava fora de cogitação. Aí ele perguntou se eu a conhecia, eu disse que sim, a Ângela completou “claro, toca no rádio”, e eu comentei: “Eu estava esperando, aliás, o Bizarro vai gravar aquela música ou não?” Aqui, uma explicação: eu me referia a uma matéria que havia saído na Zero Hora alguns meses antes, assinada por Juarez Fonseca. Ali eram citados alguns versos de “Salve o Rei” antes de a Continental começar a divulgar a música – daí o “estar esperando”. E o mesmo texto informava que eles haviam composto “Dama da Noite”, mas que era densa demais. “A gente fez a música, mas não podia tocá-la”, teria dito Alexandre para Juarez. Então a matéria acrescentava que a composição “sairia às ruas” (entenda-se: seria gravada na Continental) pelo grupo Bizarro. Mas até então, nada. Alexandre disse que o Bizarro tinha prometido gravar. “Que música?”, quis saber Calique. Quando Alexandre respondeu “Dama da Noite”, o baixista comentou que a adorava. “Era bem pra eles aquela música”, comentou Alexandre. Depois completou: “Não tem nada a ver conosco.” Eu fiz a indagação óbvia: “Então por que fizeram?” Ficou no ar um clima de “pois é” e Ângela resumiu: “Saiu…” (É curioso que, entre as últimas músicas do Inconsciente Coletivo, havia algumas mais pesadas, como “Canteiros de Tramandaí”, “Velhas Mentiras” e “Camarada”. Considerando os novos rumos que eles buscariam, fica difícil imaginar que eles mesmos não conseguiriam interpretar uma composição própria.)

Outra canção que eles ensaiaram naquela tarde foi “Êxodo Rural”. Essa eu não conhecia. Perguntei se já tinha sido divulgada na Continental e eles confirmaram que não. Calique disse, com ênfase, em tom de brincadeira: “I-né-di-ta!” João Antônio emendou: “Tás ouvindo em primeira mão!” O mais incrível é que eles falaram isso despretensiosamente, talvez sem imaginar que era exatamente o que eu estava sentindo: emoção e privilégio por estar conhecendo uma música do Inconsciente Coletivo antes de todos os ouvintes da Continental! Bem… quase todos. Depois a rádio começou a tocar “Êxodo Rural” numa gravação ao vivo do show de Passo Fundo, de forma que, quem esteve lá (como minhas primas), já a tinha ouvido.

“Salve o Rei” e “Êxodo Rural” foram as duas únicas músicas realmente ensaiadas naquela tarde, mas eles fizeram trechos de várias outras. Como, por exemplo, a introdução de “Fadas Douradas”, com Calique e João Antônio tocando flautas em uníssono (como fariam novamente no show “Sul, Primeiros Passos”, que será o tema de meu terceiro texto sobre o grupo). Já naquela época eu tinha uma tendência incontrolável de fazer piadas infames, e não resisti. Perguntei ao Calique: “Tu é gremista ou colorado?” Intrigado, ele respondeu: “Colorado, por quê?” Aí eu disse: “Ah, então tu pode tocar flauta!” Alguns riram, acho que mais pela surpresa de eu ter feito a piadinha do que por ela ter ou não graça. Calique confirmou: “Tranquilo…” Em outro momento, Alexandre começou a interpretar “Viola em Punho”: “Levanta o sol, levanto cedo / vou cantando campear / levo um beijo em minha testa / de Maria a me esperar”. Nesse ponto Calique interrompeu dizendo que “Ana Rita” ficava melhor. Eu nem sabia que a música tinha essa variação na letra. Conhecia “Maria”, mesmo, da rádio Continental. Mas foi a “Ana Rita” que eles cantaram em dezembro, no 4º e último Vivendo a Vida de Lee.

Como eles já estavam com disco anunciado, perguntei quando iriam gravar. Se não me engano a resposta foi “mês que vem”. Mas nas lojas, mesmo “só em novembro”, disse Alexandre. “Dezembro”, emendou Ângela, mais realista. Comentei que, nos últimos dias, a Continental só tocava “Voando Alto”. Embora não tenha explicado a eles, eu estranhava porque era uma das composições mais antigas do grupo e havia outras que mereceriam divulgação. Alexandre comentou, num tom meio constrangido: “É uma musiquinha legal, mas agora já enjoou um pouco…” Na verdade eu desconfiava – e depois isso se confirmaria – que eles escolheriam essa para o lado A do disco que lançariam.

Lá pelas tantas eles entraram numas de queimar umas palhetas brancas com cigarro, fazendo um furo no meio. “Por que isso?”, perguntei. “Palheta marca Inconsciente Coletivo”, brincou Ângela. Como bem observou Calique, a fumaça resultante exalou um cheiro de Vick Vaporub. Em outro momento, Alexandre começou a cantar uma música sozinho ao violão. “Você me deu a luz… quando eu estava cego…” Lembro também da expressão “poemas antigos” na letra. Perguntei se eles iriam gravar a música (na rádio Continental, eu queria dizer) e ele disse, “não, tamo fazendo ainda”. E já tinha nome: “Madame Solidão”. Mas nunca mais a ouvi.

Na saída, eu e Calique viemos juntos de ônibus para o centro. No momento em que deixamos a casa do Alexandre eu disse a ele: “Sou ligado no som deles”. Curioso eu ter tido “deles”, pois Calique agora era um “deles”, também. Ele quis saber como eu tinha conseguido o endereço e eu expliquei a amizade de meus pais com os de João Antônio (acho que nem hoje eu seria capaz de pesquisar o endereço de um ídolo e aparecer de surpresa!). Ele falou: “Enquanto eu não estiver fazendo vocal e tal, não vou me sentir Inconsciente.” “Bom, tu tá entrando agora…” “Mas em Passo Fundo, já fui.” Em seguida ele comentou que, no início, achava o som do Inconsciente Coletivo meio imaturo, mas que se surpreendeu mesmo foi quando eles apresentaram “Sobre a Guerra” no Musipuc. Lembro que já estávamos no ônibus quando observei que, na gravação de “Voando Alto” que tocava na Continental, a voz do Alexandre mal alcançava a “caída” no final do verso “sem o som do relógio do lado”. Ele fez uma cara séria e disse: “Isso tem como corrigir.”

Coincidência ou não, quando saiu o disco, a melodia estava alterada, com duas notas bem distintas salientando as sílabas “la-do”. Calique sugeriu também que eu viesse assistir a um ensaio em véspera de show, quando o grupo estava mais afiado. Mas nunca mais falei com eles. Ou melhor: falei com Calique décadas depois, no estúdio em que ele trabalhava, mas ele não lembrou de mim. Para eles, foi algo corriqueiro, mais um entre tantos ensaios. Para mim, foi uma experiência marcante que está bem viva em minha memória.

http://emiliopacheco.blogspot.com/2012/05/inconsciente-coletivo-o-ensaio.html numa terça-feira de maio 22, 2012


Sobre o autor, por ele mesmo:
Emilio Pacheco, Porto Alegre, RS, Brasil, sou jornalista free-lancer apaixonado por música. Minhas colaborações mais frequentes foram para o International Magazine, mas já tive matérias publicadas em Poeira Zine e O Globo. Também já colaborei com os sites Portal da Jovem Guarda e Collector’s Room. Aqui no blog, escrevo sobre assuntos diversos.


Sobre o Xandy: [clique aqui], video e áudio: [clique aqui]

Sobre o ‘Grupo Inconsciente Coletivo‘:

Parte 1 de 3 [clique aqui]
Parte 2 de 3 [clique aqui]
Parte 3 de 3[clique aqui]