Relicário do Rock Gaúcho

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[LEITURA] Arthur de Faria: História do Rock Gaúcho [CAP 5]

História do Rock Gaúcho Porto Alegre: uma biografia musical
Arthur de Faria: História do Rock Gaúcho – capítulo 5


Se os Cleans e os Brasas foram os primeiros a gravar, não foram os pioneiros roqueiros gaúchos a compor suas próprias canções. Antes deles havia Os Satânicos. Em 1964 encapetaram-se numa banda três amigos que se cruzavam pelas esquinas da Cidade Baixa, reunindo-se para tocar no violão as novidades da ‘música jovem’: eram Hermes Aquino (Rio Grande, RS, 21/05/1949), Cláudio Vera Cruz (Curitiba, PR, 26/04/1947) e Renato Rodrigues, o Português. Hermes, ao que tudo indica, foi o primeiro compositor do rock gaúcho. O irônico é que ele se consagraria nacionalmente nos anos 1970, mas daí bem distante do rock.

O GR-Show (foto)

A notícia sobre Os Satânicos logo se espalhou pela cidade: “Bah! Os cara tão fazendo as música deles!”. Só que durou pouco: foram mesmo os primeiros a compor rock em porto-alegrês, mas rapidamente abandonam o projeto, impactados com a explosão beatle daquele mesmo ano. A partir daí se dedicam ao repertório do quarteto de Liverpool e, em 1966 – ano do LP Revolver – acrescentam o Português no baixo, mudam de nome para Som 4, e viram a banda beatle cover oficial da cidade. Fazem muito sucesso nos bailinhos até 1968, quando Hermes e Vera Cruz são chamados para um… emprego! Em música!

E não era qualquer emprego: seriam integrantes da banda que estava sendo criada para o já citado programa GR-Show, de Glênio Reis. O conjunto teria o mesmo nome, tocaria todos os sábados à tarde durante a transmissão e, de quebra, faria bailes animados pelo apresentador. O repertório era eclético, e a formação inspirada no RC-7, a banda de Roberto Carlos naquele momento: meio rock´n´roll, meio soul, com o básico de guitarra, teclado, baixo e bateria acrescentado de um naipe de sopros – trompete, sax tenor e trombone.

(Com a explosão da Tropicália, o cenário do pop-rock nacional estava mudando rapidamente, assim como a sonoridade do Rei Roberto, que começava a aproximar-se da soul music e de um público mais adulto. O maior sintoma disso é que a TV Record tirara do ar o programa Jovem Guarda.)

Hermes, ao contrário de seus colegas, tinha um objetivo bem claro para a grana que juntava como assalariado: logo que deu, mandou-se para São Paulo, onde já estava o amigo de infância, vizinho, ex-parceiro de grupos amadores de bossa-nova e compositor Carlinhos Hartlieb, que há um tempo lhe enviava cartas e mais cartas com um assunto básico: – Vem!

Dia 22 de fevereiro de 1969, com o cachê de um baile de reveillon animado pelo GR-Show em Erechim, ele foi – e sua história segue em outro volume, livro ou capítulo.


Se o Som 4 era a banda beatle da cidade, faltava… a banda stone. E ela aparece em 1967: o Alphagroup, liderado pelo lendário Mutuca (Carlos Eduardo Weyrauch, Porto Alegre, RS, 12/08/1946 – Taquara, RS, 13/06/2018). Primo do recém-citado Carlinhos Hartlieb, Mutz Weyrauch foi um dos maiores ícones roqueiros da cidade.

Tudo começou em 1966, tocando com amigos numa banda chamada Os Incógnitos. No ano seguinte, toma o poder no conjunto, enche o repertório de The Who e Rolling Stones e os re-batiza como Alphagroup. Tendo como sideman o guitarrista e futuro jornalista Mola (Nelson Matzenbacker Ferrão, 26/02/1950), são muito mais rock que pop, ingleses que estadunidenses, e ainda botavam na roda suas primeiras composições – em inglês. A banda acaba em pouco mais de um ano, mas depois de muitos bailes e festas.

Beto, Chaminé: bestiais (foto)

Mutuca cria então O Succo, com o Claudio Vera Cruz d´Os Satânicos/Som 4 na guitarra e vocal, Moka Lucena na outra guitarra, João Blattner – do então recém-criado Impacto – na bateria e, no baixo e vocal, outra figura legendária do rock sulista: Flávio Chaminé (Flávio Coiro Dias, Porto Alegre, RS, 30/03/1950 – Porto Alegre, RS, 21/05/2004). Até o paulista Zé Rodrix, na sua fase hippie porto-alegrense, participa, como músico contratado – a banda também chegou a ter dois bateristas e até dois baixos, ideias inéditas na cidade.

Flávio Chaminé encarnou como poucos o espírito roqueiro, ainda que sempre tenha transitado por outros estilos e se tornado mais conhecido numa banda que pouco tinha de rock: o Musical Saracura, da virada dos anos 1970 para os 1980. Também é sua a frase “o rock tentou me matar, e não conseguiu. Mas o blues quase chegou lá!”. Largou o colégio já no ginásio, quando ouviu os Shakers (uruguaios, eram a melhor banda beatle do Cone Sul, imensamente populares no Uruguai, Argentina e Rio Grande do Sul na segunda metade dos anos 1960). Daí foi aprender baixo com o Português do Som 4. Em 1966, Chaminé resolve misturar Beatles e Jovem Guarda e funda o Brasa 4, que depois se transforma em Bestial Project – com Beto Roncaferro na guitarra. Já pelo nome – influência da banda americana Blues Project – se vê que o clima ingênuo beatle já não existia. Foi com o fim da Bestial que Claudio Vera Cruz o chama para o Succo. A partir daí, Chaminé e Mutuca se cruzarão muito pela vida.

Como no frisson que causaram no II Festival Universitário da Canção da Faculdade de Arquitetura, com a música Nem Só de Graves Vive o Homem (para a qual chamam o Português para terem dois baixos – graves – no palco). Quem estava lá e melhor descreveu a cena é o jornalista Juarez Fonseca, num texto seu, ainda inédito, sobre os anos 1960 na música de Porto Alegre (na verdade, é uma versão ampliada e revista do que foi publicado sob o título “Música nos anos 60: uma década quase esquecida” no livro “Pensando Porto Alegre: Reflexões Sobre a Cultura da Cidade”, Porto Alegre, Ed. Hominus, 2010).

Vai daí, Juarez:

Rogério, Mutuca, Felipe, Bugo, Bebeco (Foto)

Mesmo antes de se realizar, o festival sublinhava a divisão e a perplexidade tanto dos universitários como da própria música brasileira. Quer dizer: havia uma deliberação moderna, tropicalista.

As polêmicas se confirmariam no palco e nos bastidores, com os participantes se autodividindo a certa altura em “contra a esculhambação” e “a favor da liberdade de expressão artística”. O grupo gaúcho Succo veio disposto a “romper as estruturas”: na noite eliminatória (…) o Chaminé circulava vestindo ceroulas e um penico na cabeça. Os demais (…), Mutuca, (…) Cláudio Vera Cruz, Eliana Donatelli e Português, exibiam um ar zombeteiro. Maria de Lourdes, mulher de Geraldo (Flach, pianista e compositor de jazz e MPB) e cantora de seu grupo, criticou a postura do Succo e Chaminé replicou com um palavrão, ao que Geraldo partiu para cima dele com um “bife”, sendo contido por outros músicos. Nesse momento, Português acertou a cravelha de seu contrabaixo elétrico na cabeça de Geraldo. O sangue corre, ele é levado para o Hospital de Pronto Socorro.

Uns 20 minutos depois da confusão, o Succo entra no palco para defender a música Nem Só de Graves Vive o Homem (era uma composição de Chaminé e Vera Cruz, mas como não eram universitários, a cantora Eliana Donatelli, estudante de Direito na PUC, a inscreveu como autora “laranja”). Uma das surpresas da “performance” seria jogar talco no grupo, e então Mutuca colocou no meio do palco o pacote de talco industrial previsto para o momento. Daí que, empolgado pela música e ainda alterado pela briga, sem mais nem menos Português chutou o pacote na direção da orquestra postada no fosso em frente – o que, além de sujar os ternos pretos dos músicos, acabou com o som dos violinos. Mesmo assim o Succo foi classificado para a final. E Português, que gostara da repercussão do talco na orquestra, resolveu aprontar outra na última noite: trouxe escondida uma galinha viva e a arremessou para o público.

Recém-chegado da Inglaterra, ele estava cheio de ideias malucas – na verdade nem tão malucas, pois em Roda Viva os atores jogavam pedaços de fígado cru na plateia e Chacrinha atirava bacalhau no auditório da TV.

São registros radicais de um festival recheado de guitarras, alguns ruídos e arranjos para orquestra assinados por Rogério Duprat, Luiz Eça, Antônio Adolfo. Depois de três eliminatórias, a vencedora surgiu na noite fria de 18 de julho, sem unanimidade do público: Por Favor, Sucesso, música de Carlinhos Hartlieb com inspiração tropicalista, interpretada por ele e o grupo de rock Liverpool.

Voltaremos a esta música e ao Liverpool, com vagar.

Mas estamos no Mutuca. Ele entra a década de 1970 em shows históricos, como Amelita, Cabeça, Tronco e Membros. E, em 1975, logo depois de participar das Rodas de Som do Teatro de Arena, funda A Barra do Porto, que pode ser considerada a primeira banda de blues de uma cidade que, 20 anos depois, seria por um tempo a capital brasileira do gênero.

A Barra tinha, entre outros, o grande guitarrista Bebeco Garcia (José Francisco Mello Garcia, Rio Grande, RS, 11/10/1953 – Porto Alegre, 19/05/2010) e, no baixo, o futuro operador de som Bugo Silveira (Ricardo Silveira, Porto Alegre, RS, 1953) – Bugo, com o guitarrista Deio Escobar e o baterista Pé Lopes logo em seguida fundariam a Rola Blues, que alguns apontam como “essa sim é” a pioneira local do “blues de verdade”.

Entre o final dos 1970 e o começo dos 1980, escreve trilhas para teatro (principalmente infantil), faz alguns shows acompanhado por bandas de primeira, e até grava um clipe para um quadro local do programa Fantástico (com a música Chove em Porto Alegre). Em 1983, vira dono de bar: o Rocket 88, onde a banda da casa seria batizada de Os Garotos da Rua. No ano seguinte é a vez da hilariante banda teatral-humorística-clima-anos-50 Os Fabulosos Irmãos Brothers: primeiro com o ator e vocalista Careca da Silva mais o pianista Léo Ferlauto (Léo Vitor da Rosa Ferlauto, Porto Alegre, RS, 05/10/1946), logo depois acrescentando o bom e velho Chaminé e o saxofonista Paulo Lata Velha (lembram? dos Cleans!). Criam um show para teatro com textos de Luís Fernando Veríssimo, chamado A Fabulosa Epopeia dos Irmãos Brothers, que estreia em São Paulo e roda bastante até a banda acabar, em 1988 – sendo sempre estranhos no ninho das modernidades do rock gaúcho dos anos 1980, que parecia naquele momento ignorar duas décadas de artistas que os precederam.

Mas Mutuca seguia impávido colosso do rock clássico.

Nos anos 1990, criou a Bric-Brothers, com Deio Escobar (guitarra e vocal), K-Cláudio Mattos (bateria), e dois ex-integrantes do Musical Saracura: Fernando Pezão (Fernando Alberto Janczura, Porto Alegre, RS, 15/08/1954) no teclado e Chaminé no baixo. Tocavam rock’n’soul e rhythm and blues. Logo depois, hiperativo, Mutuca inventou o show/evento Hot Club do Mutuca, estrelado pela banda Mutuca e os Animais, que teria alguns dos melhores músicos de rock da cidade. Era uma verdadeira workshop, com masterclasses dos guitarristas Marcelo Truda (Marcelo Lopes Truda, Porto Alegre, RS, 14/04/1961) e Paulinho Supekóvia, de Chaminé, dos Garotos da Rua, Edinho Galhardi na bateria e Ricardo Cordeiro no sax (Ricardo Weissheimer Cordeiro, Porto Alegre, RS, 15/01/1957), além do pianista Sérgio Stosch (Sérgio Stosch, Porto Alegre, RS, 10/05/1946).

Vira radialista, primeiro com o programa Tequila Sunrise, na Felusp FM, depois com O Hot Club do Mutuca, na Ipanema FM, depois Unisinos FM e finalmente Dinâmico FM. Paralelo, assina uma coluna no jornal NH, de Novo Hamburgo, sempre mostrando o profundo e embasado conhecimento que tinha sobre rock, em especial o brasileiro dos anos 1950 e 60.

Surpreendentemente, só quando o rock gaúcho oitentista baixou a poeira é que, em 1999, ele conseguiu gravar o primeiro de seus dois únicos discos. Tinha 53 anos de idade e 33 de carreira quando foi lançado Hot Club – Mutuca e os Animais (o segundo, Alma Prisioneira, é de 2014).

Quando morreu de enfarte, em 2018, Mutuca morava em Taquara, a 70 km de Porto Alegre, apresentava o Hot Club na rádio, fazia shows com a Mutuca Rock’n’Roll Band, e preparava dois livros há muito esperados: o Almanaque da Família Weÿrauch (A Família do Mutuca) e Remembranças do Rock Gaúcho – Autobiografia e Histórias das Bandas. Bibliografia básica – que segue inédita! – para quem quer que queira estudar o assunto…

 

Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).


O original está na URL à seguir, que foi lida em 10/02/2021; reformatado, incluímos imagens de sua origem: : Arthur de Faria: História do rock gaúcho – capítulo 5 em 14 de fevereiro, dia 14 de 2020

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