Relicário do Rock Gaúcho

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[LEITURA] Arthur de Faria: História do Rock Gaúcho [CAP 4]

História do rock gaúcho | Parêntese | Porto Alegre: uma biografia musical
Arthur de Faria: História do rock gaúcho – capítulo 4
fevereiro 7, 2020
De volta a 1963.

Se, no ano anterior, a Apache havia sido, ainda que muda, a primeira banda de rock do sul, o primeiro grupo local a incorporar os vocais foi o The Cleans: na guitarra e voz, Zé Roberto (José Roberto Ferreira, Rio Grande, RS, 05/1945); no baixo, Santa Maria; Carlos Roberto Souza na bateria e, no sax, o futuro jazzista/bluesman “Paulo Lata Velha”, nascido Paulo Ernani de Oliveira (Porto Alegre, 10/11/1946 – 13/09/2015).

Os Cleans – Disco de Vinil

Os Cleans começam sua carreira em Canoas, cidade da Grande Porto Alegre, 14 km ao norte do centro da Capital; Faziam bailinhos como todos os outros, nos muitos clubes da cidade. Mas eram especialmente bons, e faziam zunir os já citados instrumentos fabricados pelo Seu Adão. E foi pra eles que Adão construiu a primeira guitarra com alavanca que se viu no estado. Uau!

Em 1966, o I Festival Nacional de Conjuntos de Jovem Guarda, promovido pela mesma TV Record do programa de Roberto, Erasmo e Wanderléa, comprova o que então era desconfiança: só no Rio Grande do Sul inscreveram-se nada menos que mil (!!!) bandas. E quemfoi melhor que as outras 999? Justamente os Cleans, com The Coiners em segundo e The Dazzles em terceiro. Na final nacional, levam um honroso segundo lugar e resolvem que essa é a deixa para tentar a vida em São Paulo. Logo estão enturmados com o pessoal do programa Jovem Guarda, no qual participam eventualmente – e é bom lembrar que, neste momento, o Jovem Guarda acabara de bater a audiência de O Fino da Bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues, tornando-se portanto o programa mais importante da emissora que tinha os mais importantes programas musicais da TV.

Mas os Cleans também começam a transitar pelo lado menos bom-moço do rock brazuca, tocando ao lado d´Os Mutantes e dos Beat Boys em eventos psicodélicos organizados pelo artista visual e agitador cultural Antonio Peticov. Mas sem deixar de tocar em programas caretésimos e de grande audiência como Almoço Com As Estrelas e Astros do Disco. Acabam contratados pela TV Excelsior como atração fixa do programa O Bom, de Eduardo Araújo.

Falando em Beat Boys, aquela banda meio brasileira-meio argentina que ficaria famosa acompanhando Caetano Veloso em Alegria, Alegria, os Cleans chegaram a ter em sua formação Tony Osanah, o líder dos Beat Boys, ainda que ele não esteja no time que vai se fixar entre 1968 e o final do grupo, em 1971: Zé Roberto e Ney Cardoso na guitarras, o baixista Luis Carlos Vasques (Guaíba, 16/06/1945), Carlos Roberto na bateria e Lairton Resende nos teclados.

Nesse meio-tempo lançam três hoje raríssimos compactos: Faz Tanto Tempo / Um Dia Que Se Vai (1967, Selo Pauta), Chick-a-Boom / Estarei com Você (1968) e Nova Geração / Depois de Uma Tormenta (1969) estes últimos pela RCA Victor. Também acompanham os conterrâneos Laís Marques e Hermes Aquino na fase paulista do IV FIC (Festival Internacional da Canção) de 1969, vencida por Hermes, com Flash (Laís e sua canção Sala de Espera ficam em terceiro).

Banda Impacto

Mesmo assim, não conseguem estabelecer-se como imaginavam. Acabam voltando pro sul. Encontram o cenário rapidamente mudado, dividido entre tropicalistas e emepebistas super-politizados, e não se encaixam muito bem em nenhuma das opções. Desmancham então a banda e Zé Roberto e Vasques entram para o conjunto de baile que ex-membros dos The Dazzles e do The Coiners tinham formado em 1969, o Impacto. O grupo se tornaria a maior referência do gênero no estado, seguindo até 2007, com vários discos gravados e um currículo de milhares de festas de sucesso.

A outra grande banda desse momento era o The Jetsons. Há quem afirme que eles é que foram os primeiros a cantar, mas a maior autoridade em rock gaúcho dessa época, o recentemente falecido Mutuca (Carlos Eduardo Weyrauch), garantia que eles frequentavam os ensaios d´Os Cleans para ver como é que se fazia.

Os Jetsons: Luis Vagner, Franco Scornavacca, Luis Ernane Guimarães, Edson Da Rosa.

Os Jetsons eram liderados por um molequinho fabuloso: um guitarrista negro de 15 anos de idade, nascido em Bagé em 20/04/1948, mas vindo de Santa Maria. Seu nome? Luis Vagner Lopes. Ele fora batizado em homenagem a Richard Wagner. Daí é fácil concluir: sim, seu pai era músico: violinista, saxofonista e clarinetista de várias big bands que se apresentavam principalmente nos clubes exclusivos para negros da região central do estado. E esse era seu mundo de criança: ouvir as orquestras do pai ao vivo, e escutar os discos de Duke Ellington, Benny Goodman, Count Basie, Xavier Cugat ou Perez Prado. Mundo que implodiu quando o menino de 10 anos assistiu No Balanço das Horas num cinema de sua cidade. Já tocava violão, e chegou em casa inoculado pelo vírus. Escreveu no instrumento: “Rei do Rock’n’Roll”.

Pois entre 1961 ou 62 (nem ele sabe ao certo), a família mudou-se para Porto Alegre. Mais especificamente para o bairro cuja mítica será construída pelo futuro compositor: o Partenon. Em poucos meses tinha montado uma banda com seus novos amigos: Luis Ernane Guimarães (guitarra), Valdir Jacques (baixo) e Edson da Rosa (bateria). Realizava seu sonho: era, disparado, o melhor guitarrista das redondezas. Aos 15 anos de idade, Luis Vagner era finalmente O Rei do Rock’n’Roll. Ao menos do Partenon.

O pai do Luis Ernani tinha mais grana que a média da população de classe média baixa dali. Foi ele que mandou fazer instrumentos pra todo mundo – com Seu Adão da Mil Sons, claro (a fábrica ficava ali no bairro!). O estoque incluía, evidentemente, a grande novidade: uma guitarra com alavanca.

Com sua insignificante média etária, nada mais natural que a gurizada começasse a mostrar seu rock instrumental no programa Parque Infantil, de Waldemar Garcia, na TV Gaúcha – depois de passarem pelo show de calouros de Ivan Castro, na mesma emissora. No mais, era aquele esquema das várias bandas revezando-se em diversos bailes. Paralelo aos Jetsons, Vagner é convidado para integrar o trio Rajadinha, com Alexandre Rodrigues no baixo e Bedeu na bateria. Bedeu e Alexandre: guardem esses nomes. Logo ali na curva dos anos 1970 serão fundamentais na gênese do samba-rock gaúcho.

Só lembrando: ainda não havia Beatles. E, ao menos para Luis Vagner, eles foram aparecer justamente no mesmo ano em que ele teve contato com outra imensa novidade que também explodiria seus ouvidos: Jorge Ben. Era mais que esperado que essa colisão de universos tão distantes gerasse um moleque de estilo único.

Os Brasas – 1966

Em 1966 a banda passa a cantar e muda de nome e endereço. O baixista já era o futuro cantor, compositor e empresário Franco Scornavacca. E o Luis Ernani, o do pai mecenas, infelizmente era tão jovem que não podia viajar sozinho, então teve de ser substituído pelo Alemão Anires. Passam a se chamar Os Brasas, e é com esse nome que embarcam rumo à capital brasileira do rock: São Paulo (é curioso pensar como o coração do que acontecia na música brasileira pela primeira vez estava ali, e não no Rio de Janeiro).

Ao contrário de tantos outros, Os Brasas conseguem se estabelecer no túmulo-do-samba-mas-possível-novo-quilombo-de-zumbi. Também são contratados pelo mesmo programa que deu emprego aos Cleans, na TV Excelsior: O Bom, comandado por Eduardo Araújo, dirigido por Carlos Imperial e criado para concorrer (perdendo, claro), com o Jovem Guarda, da Record. Os quatro eram a base da Banda Jovem do Maestro Peruzzi, que acompanhava Eduardo também em disco e se completava com seis violinos, backings vocais e um naipe completo de big band de jazz (3 trompetes, 3 trombones, 4 saxofones). O menino Luis Vagner que, antes de descobrir o rock, vibrava com as orquestras paternas, acabava de fechar um ciclo. Também se apresentavam no Linha de Frente, programa d’Os Vips, e eram contratados do escritório O Bom – de quem? Eduardo Araújo, claro.

Acompanharam Demétrius no compacto do clássico da Jovem Guarda Eu Não Presto Mas Eu Te Amo, ao mesmo tempo em que a Banda Jovem assina com a Odeon e grava o LP Peruzzi e sua Banda Jovem – misteriosamente lançado pelo selo Parlophone, dedicado à música erudita. Também gravam um compacto para a Continental acompanhando o humorista Zé Fidélis numa paródia de “Girl”, dos Beatles, batizada de “Meu Boi”. A gravadora gosta tanto do resultado (os caras emulam os Beatles perfeitamente) que finalmente os contrata para serem eles mesmos, lançando alguns compactos a partir de 1967 e seu único LP em 1968.

Se considerarmos “Rock on Big Hits” do Conjunto Norberto Baldauf, esse será o segundo LP da história do rock gaúcho. Dez anos depois do primeiro. Se não considerarmos aquele disco rock seremos pessoas sensatas e o LP d´Os Brasas será então…

…O Primeiro Disco do Rock Gaúcho!

Os Brasas – LP

O disco, chamado simplesmente “Os Brasas”, é puxado por “A Distância” (versão de Oriental Sadness, do The Hollies) e, com sua mistura de Jovem Guarda, pitadas de psicodelia e rock inglês, é hoje cultuado pelos amantes das ingenuidades do rock brasileiro pré-Mutantes, o tal Iê-iê-iê (sim, porque é disso que se trata). Jovem Guarda, psicodelia e rock inglês: essa poderia ser a fórmula do que nos anos de 1980 a 2000 se entendia por “Rock Gaúcho” (como subgênero musical).

Anote essa ideia. Voltaremos a ela.

A ironia é que, pelo fato de serem, os quatro, músicos acima da média dos roqueiros brasileiros de então (até por suas formações musicais diferenciadas), acabaram tão requisitados como banda de apoio que isso acabou atrapalhando uma possível carreira solo mais relevante.

Um grande momentos é cumprindo essa função com um dos artistas de maior prestígio da Jovem Guarda, Ronnie Von, em sua guinada mais radical: o hoje ultra-cult LP Ronnie Von, de 1969, marco da psicodelia nacional e totalmente incompreendido naquele momento – como também seria o outro LP de Ronnie do mesmo ano, A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nuncamais (e que incluía a canção Pare de Sonhar Com Estrelas Distantes, de Vagner). Imagina se um fã do pequeno príncipe Von iria engolir aquele lance meio Mutantes, onde Vagner e suas guitarras fuzz brilham especialmente.

Vagner seguiria como precursor de ondas. Ainda nos anos 1960 emplacou parcerias suas com o letrista Tom Gomes em discos de metade da Jovem Guarda: Os Caçulas (o sucesso A Moça do Karmann Ghia Vermelho), Ed Carlos, Silvinha, Antônio Marcos, Deny e Dino, Vanusa, Martinha, Bobby di Carlo e até da já dinossaura Celly Campello – além de algumas canções só suas, como Magoei Seu Coração (sucesso de Demétrius) e a totalmente tropicalista Sílvia 20 Horas Domingo, que puxou a redescoberta de Ronnie pelos psicodélicos dos anos 1990 e foi regravada pela banda gaúcha Video Hits em 2001, no seu único CD, Registro Sonoro Oficial.

Recuperando seu Jorge Ben interior, ele seria em seguida um dos principais nomes do samba-rock nos anos 70, gravaria vários discos solo, emplacaria hits como O Guitarreiro e, dez anos depois de sua ida para São Paulo, lançaria nada menos que o reggae no Brasil. Entrou o século XXI chamado de mestre pela massa regueira do Oiapoque ao Chuí e hypado com a volta do samba-rock. Mais tarde falaremos de tudo isso. Por enquanto, sigamos no rock.


Playlist atualizadíssima:


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).


O original está na URL à seguir, que foi lida em 10/02/2021; reformatado, com imagens que não constam na sua origem:  Arthur de Faria: História do rock gaúcho – capítulo 4 em 7 de fevereiro, do ano de 2020.

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